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A engenharia segundo Lampedusa

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Renato Vargas

 

Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) foi um escritor italiano pouco profícuo, mas no único romance que produziu, “O leopardo” (Il Gattopardo, Difusão Europeia do Livro, 1961), deixou uma das frases mais conhecidas da política. O romance descreve a decadência da aristocracia siciliana durante o Risorgimento (1815-1870) – época da unificação italiana –, que acompanhava com preocupação a organização de um movimento republicano, contrário aos seus interesses. O protagonista, Dom Fabrízio, era um nobre siciliano que já não conseguia conter o levante dos camponeses e buscou forças no seu sobrinho, Tancredi, que formulou a frase referida: “Se não nos envolvermos nisso, os outros implantam a República. Se quisermos que tudo continue como está, é preciso que tudo mude. Fui claro?” E lá se foi Tancredi, com sua personalidade sedutora e flexível, tomar parte das tropas revolucionárias de Giuseppe Garibaldi para garantir os feudos da família. Traduzindo: tudo mudar, aparentemente, para que tudo permaneça como está.

 

Pouco tempo depois do lançamento do livro, no final dos anos 1950, esse romance seria consagrado nas telas – e premiado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes – com os famosos atores Burt Lancaster, no papel de Dom Fabrízio; e Alain Delon, como Tancredi, sob a direção de Luchino Visconti. 

 

Esse reino das mudanças aparentes sempre foi uma estratégia do estamento político hegemônico e das grandes corporações. Quando percebem algum risco de mudança indesejada, tomam a frente, estabelecem “novos paradigmas” por meio de choques administrativos, revoluções industriais, “inovações disruptivas” e outras expressões consagradas, com o objetivo de manter a situação sob controle. 

 

Aparentemente, a sociedade em rede do mundo informacional, submersa na conectividade das mídias sociais e suas pós-verdades tuteladas pelo mercado financeiro, está diminuindo o tempo entre esses “ciclos de transformação” e tem promovido mudanças em um ritmo alucinante.

 

O engenheiro Klaus Schwab, fundador e presidente executivo do Fórum Econômico Mundial de Davos, identificou no seu livro consagrado “A quarta revolução industrial” (Edipro, 2016) sinais de que ela pode aumentar ainda mais as desigualdades sociais, um problema que sempre foi uma ameaça à estabilidade dos governos e corporações.

 

Como um pensador da modernidade, mas atento aos eventos históricos, Schwab está ciente de que esse tipo de desequilíbrio sempre foi o gatilho para as convulsões sociais como as grandes revoluções burguesas e socialistas que transformaram o mundo em suas épocas. Portanto, nada mais natural que partir para um período de “flexibilização” dos paradigmas da Revolução 4.0, introduzindo algumas inovações na gestação em curso da Revolução 5.0.

 

Não por acaso, uma das disseminadoras dessa iniciativa, sua colega no Fórum Econômico, Yoko Ishikura, propôs em palestra no IT Forum, em Salvador (BA), no ano de 2019, uma “sociedade 5.0, um conceito similar à indústria 4.0, mas com a diferença de que é mais centrada no ser humano, ao invés do movimento tecnológico”. 

 

Esse poder de antecipação, descrito tão bem em “O leopardo”, é um modo de operação antigo, porém eficiente. Por isso, a frase de Lampedusa é bastante citada nas academias do Brasil. Thomas Skidmore, por exemplo, um famoso brasilianista, iniciou um dos seus últimos livros – “Uma história do Brasil” (Paz e Terra, 1998) – com a proposta de explicar como o Brasil, a despeito de todas as “mudanças” ao longo de uma história de 500 anos, demonstrou uma notável capacidade de perpetuação dos mesmos grupos dominantes. 

 

Esse estado de mutação sempre chegou aos nossos engenheiros por meio de propostas que contemplam um pretenso alinhamento com os avanços nos centros desenvolvidos e a recorrente ameaça da perda de competitividade tecnológica. Assim, acompanhamos a reengenharia, a educação continuada e a atual doutrinação sobre inovação e competitividade, que está parindo o engenheiro empreendedor, apaixonado pelo business, em detrimento da formação técnica.

 

Se nos países de origem essas tendências observam o rigor científico e são recompensadas por significativos progressos econômicos, aportam em terras tupiniquins com tons mais leves, acompanhados por um entendimento parcial, expresso em discursos superficiais recheados de siglas e anglicismos, e se disseminam rapidamente através de seminários e congressos para, finalmente, encontrar espaço nos cursos de engenharia.

 

Com o tempo, essas ondas vão deixando o cenário de forma suave, sem significativas mudanças tecnológicas, econômicas ou na cultura das corporações, confirmando a premissa de tudo mudar para tudo ficar como está.

 

Entretanto, sob a perspectiva da história, é possível perceber que na realidade esses tímidos avanços tecnológicos, amplificados por meio do poderoso arsenal midiático, formaram a base para os movimentos diversionistas que confundem as prioridades e espalham suas consequências nefastas no desenvolvimento da indústria brasileira.

 

Dois exemplos são suficientes para ilustrar: enquanto ornamos nossos seminários com o mantra de inovação e competitividade, a indústria de óleo e gás, com seus trilhões de dólares e milhões de empregos, foi tomada à mão grande do Brasil por meio de um golpe que envolveu corporações nacionais e multinacionais e os três poderes da República; e se retornarmos um pouco mais no tempo, uma promissora indústria automotiva, baseada na tecnologia do álcool, foi jogada para o esquecimento por meio de pressão das grandes multinacionais do setor, e hoje nos são empurrados os motores híbridos e elétricos como a inquestionável salvação do mercado nacional.

 

Duras derrotas que vieram para agravar a trajetória de queda livre da indústria nacional desde os anos 1980, e custaram milhares de empregos e o aviltamento dos salários dos engenheiros. Tudo isso foi resultado de movimentos empresariais e políticos internos comprometidos com as pressões externas, que oscilaram entre a corrupção e o descompromisso com o desenvolvimento do País.

 

Por outro lado, esses movimentos foram facilitados por conselhos de classe pouco participativos, e até certo ponto coniventes, e por uma estratégica manipulação das leis para fragilizar os sindicatos e solapar a capacidade de indignação e mobilização de várias categorias.    

 

Mas a identificação desse quadro de caos político e econômico também pode significar o início de um aprendizado e criar oportunidades para os engenheiros. Afinal, nossa formação técnica, baseada na construção de diagnósticos e estratégias objetivas de abordagem, reúne os elementos fundamentais para observar uma realidade e propor soluções. Entretanto, para isso, o engenheiro deve estar mais engajado na realidade política e socioeconômica nacional, criando e participando de fóruns de discussão mais críticos, apoiando instituições realmente comprometidas com o desenvolvimento nacional, investindo em cultura e lendo mais, para adotar uma postura menos vulnerável aos discursos importados dos centros desenvolvidos. 

 

Renato Vargas é engenheiro mecânico, mestre e doutor na área pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), diretor técnico-administrativo do Núcleo de Consultoria em Engenharia e Pesquisas em Tecnologia Ltda. (NEP) e coordenador da Relief, plataforma EaD desenvolvida para capacitação de engenheiros na área de análise estrutural. Pesquisador na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP na área de história da ciência e tecnologia do Brasil, tem quatro livros publicados em coautoria

 

 

Imagem no destaque e interna: Arte - Eliel Almeida / Foto Renato Vargas: Acervo pessoal

 

 

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Comentários  
# Engenheiro, MScPaulo Eduardo França 01-09-2022 10:35
Excelente artigo, mostrando a necessidade de termos engenheiros tecnicamente competentes e, ao mesmo tempo, com senso crítico apurado e envolvimento nos grandes problemas nacionais, para que possamos mudar, estruturalmente e de verdade, nosso país.
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